quinta-feira, 20 de outubro de 2016

D e o pássaro




O pássaro fazia movimentos desprovidos de ritmo, e desenhava na neve a ilusão de que era maior do que na realidade. D olhava para ele, pensando se deveria intervir. Ao contrário do que as pessoas imaginavam, Ele nem sempre tem todas as certezas. Às vezes abre mão de tê-las. 

Olhou para um lado e outro, nenhum outro ser vivo à vista, além dele e do pássaro – que, a julgar pelo mover em espasmos e arrancos, em breve estaria fora da lista dos “vivos”.


D puxou mais um pouco de veneno do cigarro. Aquilo não poderia lhe fazer mal nenhum, mas Ele se sentiu bem ao ser invadido pela onda quente e aromática. Tragou e expeliu calmamente a fumaça pelas narinas, enquanto observava a ave a seus pés. O animal se movimentava mais freneticamente, talvez tentasse se erguer, mas era mais provável que estivesse reunindo forças para a Passagem, pois mesmo para se despedir do Vale de Lágrimas é preciso certo vigor.


Distraído – era bom desligar as habilidades de vez em quando –, D fumou mais um pouco, e sentiu (que bom é sentir, seja o que for, para quem normalmente nada sente!) os lábios queimando quando a brasa atingiu o filtro. Com um gesto não desprovido de ira sem razão, jogou a guimba no lago, vários metros adiante. Enquanto o toco do cigarro descrevia a parábola rumo à água, D imaginou o tssss que ele faria ao ser beijado por ela. Não pôde ouvir quando aconteceu, pois abrira mão de usar esse poder também.


Voltou os olhos para o pequeno bicho. Também não se utilizava, naquele instante, por Sua vontade, da ciência total sobre tudo e todos. Então, não sabia se a coisinha patética ainda vivia. Os acontecimentos se desenrolavam, não à Sua revelia, pois o Filho e o Outro trabalhavam sem cessar, e os três eram, de certo modo, um. 

O passarinho estava imóvel.


Abaixando-se, tocou o corpinho, que já se tornava rígido. O calor o abandonara. D pensou em ressuscitá-lo, dar-lhe uma nova chance, mas isso ia contra as regras. Mesmo “Ele” estava sujeito a regras, que Ele mesmo criara antes da alvorada dos tempos. Com a mão esquerda, cavou um buraco na areia úmida e com a direita colocou o pequeno cadáver dentro, enterrando-o num mini-funeral. Pôs-se de pé e suspirou. Por um instante, nada pareceu fazer sentido.


Então, uma ave absolutamente igual – porque era o mesmo ser, embora incorpóreo e apenas uma forma translúcida e levemente fluorescente – pousou em seu ombro. E sem a necessidade de palavras, perguntou por que não tinha recebido ajuda. “Eu não tinha que ajudar!”, respondeu D em sua mente, e o pássaro ouviu e aceitou. Batendo as asas, alçou voo e sumiu para sempre entre as nuvens deste e de outros mundos.


D ficou olhando para cima por alguns minutos. Riu um riso nervoso por um par de instantes, quase descontrolado, mas Ele não poderia se descontrolar, mesmo se quisesse. Suspirou novamente e, empertigando-se, ordenou a todos os seus atributos que retornassem. Novamente integrado ao Universo, Sua forma física se desvaneceu. Estava em casa outra vez. Estava em todos os lugares. E tinha um infinito de coisas para fazer.


Goiânia, 19/10/2016, 10:46 a.M.

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