O pássaro fazia movimentos
desprovidos de ritmo, e desenhava na neve a ilusão de que era maior do que na realidade.
D olhava para ele, pensando se deveria intervir. Ao contrário do que as pessoas
imaginavam, Ele nem sempre tem todas as certezas. Às vezes abre mão de tê-las.
Olhou para um lado e outro,
nenhum outro ser vivo à vista, além dele e do pássaro –
que, a julgar pelo mover em espasmos e arrancos, em breve estaria fora da lista
dos “vivos”.
D puxou mais um pouco de veneno
do cigarro. Aquilo não poderia lhe fazer mal nenhum, mas Ele se sentiu bem ao
ser invadido pela onda quente e aromática. Tragou e expeliu calmamente a fumaça
pelas narinas, enquanto observava a ave a seus pés. O animal se movimentava
mais freneticamente, talvez tentasse se erguer, mas era mais provável que estivesse
reunindo forças para a Passagem, pois mesmo para se despedir do Vale de Lágrimas
é preciso certo vigor.
Distraído – era bom desligar as
habilidades de vez em quando –, D fumou mais um pouco, e sentiu (que bom é
sentir, seja o que for, para quem normalmente nada sente!) os lábios queimando quando
a brasa atingiu o filtro. Com um gesto não desprovido de ira sem razão, jogou a
guimba no lago, vários metros adiante. Enquanto o toco do cigarro descrevia a parábola
rumo à água, D imaginou o tssss que
ele faria ao ser beijado por ela. Não pôde ouvir quando aconteceu, pois abrira
mão de usar esse poder também.
Voltou os olhos para o pequeno
bicho. Também não se utilizava, naquele instante, por Sua vontade, da ciência total
sobre tudo e todos. Então, não sabia se a coisinha patética ainda vivia. Os acontecimentos
se desenrolavam, não à Sua revelia, pois o Filho e o Outro trabalhavam sem
cessar, e os três eram, de certo modo, um.
O passarinho estava imóvel.
Abaixando-se, tocou o corpinho,
que já se tornava rígido. O calor o abandonara. D pensou em ressuscitá-lo,
dar-lhe uma nova chance, mas isso ia contra as regras. Mesmo “Ele” estava
sujeito a regras, que Ele mesmo criara antes da alvorada dos tempos. Com a mão esquerda,
cavou um buraco na areia úmida e com a direita colocou o pequeno cadáver dentro, enterrando-o num mini-funeral. Pôs-se de pé e suspirou. Por
um instante, nada pareceu fazer sentido.
Então, uma ave absolutamente
igual – porque era o mesmo ser, embora incorpóreo e apenas uma forma
translúcida e levemente fluorescente – pousou em seu ombro. E sem a necessidade
de palavras, perguntou por que não tinha recebido ajuda. “Eu não tinha que
ajudar!”, respondeu D em sua mente, e o pássaro ouviu e aceitou. Batendo as
asas, alçou voo e sumiu para sempre entre as nuvens deste e de outros mundos.
D ficou olhando para cima por
alguns minutos. Riu um riso nervoso por um par de instantes, quase
descontrolado, mas Ele não poderia se descontrolar, mesmo se quisesse. Suspirou novamente e, empertigando-se, ordenou a todos os seus
atributos que retornassem. Novamente integrado ao Universo, Sua forma física se
desvaneceu. Estava em casa outra vez. Estava em todos os lugares. E tinha um
infinito de coisas para fazer.
Goiânia, 19/10/2016, 10:46 a.M.
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